a pressa traz nos braços sua bagagem de atrasos ; distribui de bom grado relógios enferrujados ; engorda na avenida e ergue novos obstáculos ; a pressa pintou-se moça e diz dar conta do recado ; chegou cedo e abriu a fábrica pro operário ; a mil por hora faz máquinas muito rápido ; a pressa medida com fita métrica tem tamanho de máximo ; corre com as pernas bem abertas empurrada pelo horário ; não descansou com o funcionário e acendeu o asfalto ; a pressa abraça as ruas, os telhados, mas não se vê tentáculos ; ajudou a motorista a jantar, a juntar o salário ; a pressa mostra a pá com a qual enterrará o passado ; acabou com a festa dos pássaros no mato ; não seca o suor na testa do trabalho forçado ; se fez sangue e força destes dias, destes maios ; constrói a época em que mais nada é acabado ; a pressa e trinta inícios por segundo por projetos ávido ; a pressa apenas, e apenas por pressa e princípios tem apreço ; a pressa só, sem limites, sem finais, sem desfecho – só começo:
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faixa do disco Cabeça de Sol em Cima do Trem (2013)
voz e texto = Thiago E
programação = Jan Pablo 
produzido por Jan Pablo / Thiago E

. pressa

do começo não se sabe : se tem peso ou quanto vale, se hoje nasce ou vira nunca, ou é uma flor que abre em rugas ; do começo, sim, se sabe: como idéia, onde ele cabe ; mora dentro e foi embora – no espelho, é a cara do agora. o começo jamais muda ( feito o freio faz o lento ) tal qual a água queda em chuva, tal qual o ar se move em vento ; se constrói esse lugar de começo e mais começo – onde os pés podem dançar sobre um som que não conheço
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faixa do disco Cabeça de Sol em Cima do Trem (2013)
voz = Francisco Bretas (participação especialíssima)
texto = Thiago E
programação = Jan Pablo 
produzido por Jan Pablo / Thiago E

. começo

e para que poetas?! e escrever?! o autor que perdeu os olhos numa guerra responde assim, tateando um bem na terra : viver é só um possível de prazer. a vida, claro, pode até ser grande ( um gozo apenas, máximo e bastante ) mas, somente este verso sinto ter : viver é só um possível de prazer ; e como estes dois olhos se apagaram, tive de acender meu corpo e ouvidos – passei a ver prazer no som, não visto : pela vibração, poemas me serviram ; pelo pulso no corpo, e não sentido ; um murro de barulho, ou urro-bicho – pra gostar do som, poemas me serviram. com a pele e a orelha achei um bem possível, e hoje, o homem de escuro e negror pega, em vão, ruído que afague a vida cega. nestas trevas, a língua é luz, é míssil, é agrado, menos dor, zoada bela : feito o estralo da estrela que em mim se atrela
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faixa do disco Cabeça de Sol em Cima do Trem (2013)
texto e voz = Thiago E
programação = Jan Pablo 
produzido por Jan Pablo / Thiago E

. rock, som

o mar sorri ao longe
dentes de espuma, lábios de céu
[ lorca ]

para arnaldo antunes & federico garcia lorca
 
o mar parece um pano, faz ondas de todo tamanho, tal qual o pano quando está secando ( seria preciso uma multidão para levar o mar para o varal ) o barco passeia no mar, agora a estampa está se mexendo ; nem tudo o que se mexe tem vida – é como o barco – é engraçado : tem pano que só aparece no fim de semana. o mar não liga pra moda, tem pano que tem flores por fora. o mar sempre guarda um jardim dentro do bolso. o mar rumina a terra o tempo todo ; tem muita espuma no mar porque ele está tomando banho ( o pano já banhou ) a chuva molha o mar e o pano : o pano fica mais pesado ; o mar recebe o emprestado – às vezes o sol vem junto e surge um arco-íris : a gente corre para o pano e se cobre com o mar
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faixa do disco Cabeça de Sol em Cima do Trem (2013)
texto e voz = Thiago E
programação = Jan Pablo 
produzido por Jan Pablo / Thiago E



. mar

é que uma vez julgaram-n  asquer s 
um ser estranh , c m lix  n  r st
na verdade nã tem face, s ´ um lh
e c nfunde-se a um beiç bem rug s

f i quand  aqui julgaram-n  um est rv
um pedaç  de carne que dá n j
um pelud  e past s  anel de c ur
cuspind  a  p dridã de um tr ç  p rc

e decret u-se enfim   que é esse  c
lugar de sempre n ite, d  mau g st
p is  nde   s l  nã  bate vale p uc

ali a pele dá descarga e vira esg t
e até h je é um mistéri  extens  e  t d
um burac  eng lid  pel  c rp
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faixa do disco Cabeça de Sol em Cima do Trem (2013)
texto e voz = Thiago E
programação = Jan Pablo 
produzido por Jan Pablo / Thiago E

a gagueira winston churchill
não tem graça julia roberts
tem palavra lewis carroll
que não passa aristóteles
é um mistério charles darwin
lá do cérebro anthony hopkins
ou do peito b. b. king
sem remédio marilyn monroe
não fluência george VI
é engenharia isaac newton
e a driblá-la napoleão
eu aprendia virgílio
interpretando bruce willis
sendo leve nelson gonçalves
ninguém gagueja machado de assis
quando escreve thiago e
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faixa do disco Cabeça de Sol em Cima do Trem (2013)
texto e voz = Thiago E
programação = Jan Pablo
produzido por Jan Pablo / Thiago E

. gagueira

você precisa dela : aonde vai a carrega no bolso, ou na mochila, ou onde passa o cinto. se for mulher, na bolsa – junto ao que já leva – alguém precisa tê-la para usar o trinco ; o que a constitui não dá pra definir : parece leve pássaro – abrigo por vir, ou é material trum! tum! metal pesado – depende se você manda em tal artefato. seus dentes rosnam sua história de poder ( alguma saberá dizer o que é você ) modelo yale, gorje, tetra – muitas são : forjada pra acabar com o plano do ladrão ; prazer de tê-la à mão e abrir a liberdade – quem é presidiário não segura em chave
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faixa do disco Cabeça de Sol em Cima do Trem (2013)
texto e voz = Thiago E
programação = Jan Pablo
produzido por Jan Pablo / Thiago E

. chave

para luana sena 
& maurício pokemon

o hidrante, em guarda, parado – no seu posto de soldado não ostenta um fardamento : se tem poder, camufla em canos pelo centro. sem medalhas nesse peito, a ferrugem vem primeiro ; um vigilante oxidado armado de sonho hidráulico. na cabeça um capacete, dutos, distribuição – funcionário sem salário onde esconde sua razão? por que pra sempre estático? só de água alimentado, abre a boca de incêndio e respira os escapamentos. sei que a chuva lhe visita ; quando não, o sol lhe trinca. se trabalha num insalubre emprego público, por que nunca abandona os infortúnios? veio de um corpo de tropa subordinado aos bombeiros. mas por que jamais retorna pro seu quartel verdadeiro? em silêncio, concentrado, deterá algum estrago? obscuro sentinela tem as peças carcomidas (permanece e não revela nem a sombra de uma pista). segreda no lábio ferroso saliva pra língua de fogo? se cogita que ele espera não ver cinzas nessa terra
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faixa do disco Cabeça de Sol em Cima do Trem (2013)
texto e voz = Thiago E
programação = Jan Pablo
produzido por Jan Pablo / Thiago E

. hidrante

1. diz-se de uma película – de idade indefinida. 2. cinema sem emprego industrial. 3. membrana que reveste as paredes do espaço denominado dia – esse aquário de lâmpadas onde bóia o cérebro do vigia. 4. primeira página ( ou folha do meio : se estiver continuando algum desejo ). 5. caderno de apontamentos – onde se clareiam os nomes, exemplos : mesa copo ungüento porta rua centro. 6. não é dimensionada pelo olfato ; tampouco apreendida pelo tato – defendem ser um estalo que precisa ser olhado. 7. a metade do relógio – incandescente ; sua cor não se refere a uma tinta. 8. usina – e solda as vigas da rotina. 9. acaso que se pode aproveitar ( tê-lo ). 10. quem sabe contemplar o mar vermelho. 11. momento em que não se pensa em obituário. 12. veneno pra vampiro. 13. tiro e caracol. 14. golpe de goela de galo que sangra e acende o sol
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faixa do disco Cabeça de Sol em Cima do Trem (2013)
texto e voz = Thiago E
programação = Jan Pablo
produzido por Jan Pablo / Thiago E

. manhã

El poeta brasileño Ricardo Domeneck presta su voz para el poema Nao se mate / No se mate del poeta también barsileño Carlos Drummond de Andrade (Minas Gerais, 1902).

Ricardo Domeneck empresta sua voz a Carlos Drummond de Andrade (dedicado a Minerva Reynosa)-1

chamada de jornal
— poema de Jeanne Callegari —

na voz de Sílvio Diogo

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ninguém a matou
ela é que morreu
foi encontrada morta
em seu apartamento

ele não a estrangulou
não montou sobre ela na cama
e quando viu
“já estava feito”

ela é que morreu
e seu corpo tinha sinais 
de violência
e os vizinhos chamaram a polícia 
dois dias depois
quando sentiram o cheiro

ele não matou
no máximo confessou o crime
chorou, tentou o suicídio
com veneno de rato
sem efeito

ela, ela disse que queria vê-lo morto
ela não o deixava ver as mensagens 
no celular

ele se mostrou arrependido
chorou e pediu para que sua família
e a dela o perdoassem

ele não a matou
ela é quem foi encontrada morta
em seu apartamento

*

Jeanne Callegari é poeta. Nasceu em Uberaba, MG, em 1981. Escreveu ‘Caio Fernando Abreu: inventário de um escritor irremediável’ (Seoman, 2008), perfil biográfico do autor gaúcho, e ‘Miolos frescos’ (Patuá, 2015), livro de poemas. Teve textos publicados nas antologias ‘É que os Hussardos chegam hoje’ (Patuá, 2014), ‘Sierra tropicalia: poesía contemporánea de Brasil y México’ (Cielo Abierto, 2016), ‘Golpe: antologia-manifesto’ (Nosotros, 2017) e em revistas como Vagón de Ostras (Argentina), Lavoura, Escamandro, Modo de Usar & Co., Raimundo e Pessoa. Faz parte do grupo de autores que criou o projeto Escritores na Estrada, que rodou algumas capitais do país com leituras e oficinas, e também do grupo que organizou o festival [eu sou poeta], voltado à produção poética feminina. Junto a Reuben da Rocha, organiza o Macrofonia!, noite mensal voltada ao cruzamento entre palavra, som e imagem. Com Raul Costa Duarte, tem o projeto poético-sonoro Botões, que investiga as relações entre poesia, ruído e paisagens sonoras.

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Foto da autora: Liliane Callegari
http://lilianecallegari.com.br/

“chamada de jornal”, Jeanne Callegari

Desenho do som, do chão, a lápis, à máquina. Poesia. Respiração. Desde as cavernas do ventre, dos cantos do quarto próprio, à nuvem, ao vento, à escuta.

“chamada de jornal”, Jeanne Callegari

Desenhares

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