Era cedo. Os pães chegavam aos cafés e enchiam de cheiros de farinha de trigo os espaços. Na certa algumas pessoas estariam a levantar-se. Outras deitavam-se. Outras apanham chuva na cabeça. Pequenas gotas que vão caindo, e temperando o cheiro a pão quente com o cheiro da cacimba. O dia será um bom dia, a noite já era. Parda e adormecida. Os anjos dançam no ar, por entre árvores, ao som de afinados barbudos que não seriam piratas mas pianistas. 

Pedro fora neto de padeiro. Nunca tivera sorte na vida o seu avô. Não sabia o que era a sorte, conhecia-a apenas do jogo. Achava que ter sorte ao jogo era ter sorte na vida. Pedro pelo contrário acreditava na sorte da vida. Ou então era muito positivista. Fervoroso adepto do contra-sedentarismo achava que se se tivera chegado até tão longe, não seria um acaso. Não seria, pelo menos, só um acaso. Era necessário ter sorte. 

Pedro tem uma paixão. Sonha um dia apanhar um comboio até ao oriente. Mas não será um comboio qualquer. Trata-se de um comboio que parta antes do pôr do sol, para que não se esqueça de como é o sol na sua terra. Depois passará por países desconhecidos, conhecendo as gentes de França e ajudando a podar as uvas, a ordenhar os gados em Itália, e sabendo o que é conhecer alguém pela hospitalidade de como algumas das províncias da Grécia parecem ser. O dia completa-se e continuará a sua viagem, porventura acabará em alguma sociedade cheia de antigos a jogar à cartas. Talvez possa também ter umas cartas e entrar em jogo, ou talvez não. 

Na chegada a um qualquer destino, não seria importante o fim da viagem. Mas o processo. O interesse de Pedro, será compulsivamente, pela viagem em si, não pela quantidade de países por que passou nem tão pouco pelo número de carimbos no seu passaporte, mas pelas pessoas que conhecerá, pelo que vai aprender, e, talvez tão ou mais importante, pelo que sentir mudar. 

A noite é parda. Cada momento é saboreado como se fosse o último. Neste momento acabou de inspirar com a maior força dos seus pulmões, e deixa-se expirar extremamente devagar e compassadamente. Escreve os cheiros que vai sentindo. Louco e sonhador. O céu escuro cristaliza-o. Começou a fitar alguém como se não conseguisse deixar de o fazer. Como se fosse a única coisa que saberá fazer. Colocou tudo de si neste olhar. Até que avançou.

As pessoas por vezes são como peças de um puzzle. Adaptam-se e encaixam. Assim será como Pedro se sente neste preciso momento. Não são só dois corpos, o seu e o dela. Será também o céu com cores que vão levantando o dia e dizendo aos pássaros que é hora de começar o chilreio matinal, serão cavalos de D. Quixote que guardam portas como se fossem moínhos, elevadores com sentido de oportunidade, cheiros abafados por cortinas de vidro, corpos molhados, uma pintura surrealista e extremamente intensa da qual não quererá sair. 

Quando estaremos prontos para dizermos que estamos pronto? 
Amanhã será apenas uma repetição de ontem? 
O futuro não é mais do que algodão doce. 
Jogo de crianças. 
Passeios pelas cidades. 
Brincadeiras de cegos. 
Devaneios meios. 
Completa mente descrente. 
É tempo de seguir. Estaremos prontos? 

Nem sempre as coisas acontecem como imaginamos. Não teria piada se isso acontecesse. Fantasmas que vão reaparecendo e com os quais nos vamos cruzando. Todos e todas temos poeiras que ficam por limpar entre os livros das estantes. Poeiras que nem sempre queremos limpar, outras vezes é-nos difícil chegar até lá. Pedro também terá as suas poeiras concertza. Mas como positivista, sente-se como um rei a limpar um castelo, qual cabana, emaranhado, esperando, um coração de leoa. 

Pedro sentiria, podemos imaginar, durante a viagem, coisas boas e coisas más. Depois acabaria por pensar muito nas coisas, boas e más, e deixaria que o seu corpo caísse numa cama, mas não iria adormecer. A sua cabeça estaria rápida demais para conseguir parar. Dizem que o amor tira a fome. A Pedro tirará o sono também. E não saberá muito mais que poderá fazer. 

"Afinal, há é que ter paciência,
dar tempo ao tempo,
já devíamos ter aprendido,
e de uma vez para sempre,
que o destino tem de fazer muitos rodeios
para chegar a qualquer parte." (JS)

Depois há-de chegar o tempo de esperar. Não de esperar qualquer coisa, mas de esperar o que Pedro deseja esperar. Um comboio de regresso. O começo de uma nova viagem. Não saberá, com tudo e com nada, bem o que esperar. Mas há de se ter paciência. E esperar. 

Este é o texto de abertura do fac-simile 'A Oposição e a Opinião Pública'. O presente documento, data de 1961. 
Ora que já nos deverão ter passado coisas bem menos atuais e ainda assim mais recentes pelas mãos. 

Música: 'The End' de Doors.

A Oposição E O Povo

Um Jovem que gosta de música. 

A young kid that loves music.

"Contar uma história pressupõe um princípio e um fim. Por vezes apanhamos a história a meio e imaginamos como terá começado, ou saímos antes do final e levamos connosco a liberdade para terminar a narrativa como desejarmos. FM, rápida diminuição de Francisco Marcus é a assinatura presente por 'um jovem que gosta de música'. Nas suas sessões musicais o ponto de partida origina-se no ambiente em que está, física e psicologicamente, assim como as pessoas que o acompanham ou que o encontram. A história melódica é contada não a uma voz, mas a várias, do pop ao rock, do soul ao funk, do clássico ao jazz. Do orgânico experimental ao sintetizado electrónico. Partindo sempre da relação entre os humores de quem toca e de quem ouve. FM não pretende criar nenhuma corrente sonora nova. Isso ultrapassa-o e tira-lhe tempo para fazer o que gosta. Criar relação com e para as pessoas através da música e da surpresa da sua narrativa musical."


FranciscoMarcus

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