Voltar ao garimpo sonoro das palavras. Se eu as disser em voz alta, soam diferente na cabeça? Querem dizer outra coisa? Dizer depois do clique tosco do tosco gravador. Sem edição. Ubaldo, desta vez. Para dizer com som as palavras que se dizem oralmente, sem o engravatamento pomposo e prudente da escrita. Pau é pau. Tesão é tesão. Ubaldo é Ubaldo. E certas palavras só podem ser ditas sem verniz. Como as que dizemos na cama, ao ouvido, entre gemidos mais ou menos sonoros. Ubaldo sabe. Nós só temos a aprender.

["A Casa dos Budas Ditosos", de João Ubaldo Ribeiro, Edições Nelson de Matos, 1999/2009]

João Ubaldo Ribeiro - A Casa Dos Budas Ditosos

A Maria é um coração aberto.

E o som da vida da Maria de São José tem tudo a ver com corações.

Tenho por hábito dizer que a Maria é a minha alma gémea da rádio. Passamos horas na palheta a jogar ideias para a mesa, como quem joga cartas. 

Podia escrever um tratado sobre a generosidade e o talento da Maria de São José, mas bom bom é mesmo ouvi-la, à beira que está de fazer anos. E eu, só podia oferecer-lhe som. 

O som da vida da Maria.

O Som da Minha Vida - Episódio 13

"Os mortos e os fósforos", crónica de Pedro Alvim ao serviço do Diário de Lisboa durante as inundações de Lisboa de 1967, publicada em "O Homem na Cidade" (Prelo Editora, 1968).
 
Novembro de 1967. 
subitamente, as primeiras notícias de uma catástrofe que se abate às portas de uma capital cerceada na liberdade, mergulhada em miséria, incapaz de acudir aos aflitos, e célere em esconder o número esmagador de  mortos (que a censura tenta, mas não consegue controlar totalmente), irrompem. primeiro no RCP, depois na imprensa diária. 
surgem ecos de uma tragédia, que é tragédia dos mais pobres, dos que vivem em leitos de cheias, em caves, em casas precárias, que, sem rede, acorrem a si próprios, com a ajuda dos bombeiros voluntários e de estudantes universitários em massa.
uma torrente de informação toma conta dos media. e um conjunto de profissionais reage, ao momento, em circunstâncias de catástrofe. uma reacção que é aprendida e forjada diante do horror.
um desses profissionais é o jornalista Pedro Alvim, que faz, ao serviço do Diário de Lisboa, “aquela que é talvez a crónica mais bonita da imprensa portuguesa" (Joaquim Letria). é o relato pungente, belíssimo na escrita e no nervo, de quem anda a contar corpos, a querer saber-lhes o nome, a querer que cada nome seja um grito de realidade.
quem há pouco a leu para um microfone, já a tendo lido muitas vezes, precisou repetir quatro vezes, na tentativa de que a comoção não turvasse as palavras. à quinta tentativa, desistiu do apuro da voz. os arranhões na garganta seca e as lágrimas são parte do que a crónica é. não se podem limpar, ocultar ou contrariar, do mesmo modo que Pedro Alvim não podia admitir que se ocultassem ou trocassem os nomes dos corpos mortos: “Se tu és João, és João. E se o teu nome é Mário, o teu nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei Lucília.”

no final, ouve-se um excerto de uma reportagem em Odivelas, transmitida a 29 de Novembro no RCP. a fotografia é de Terence Spencer, para a Life.

Os Mortos E Os Fósforos Pedro Alvim.MP3

Excerto de "Arquipélago", de Joel Neto (Marcador, 2015) 

que amor é esse que só as ilhas forjam, que tem a terra a tremer-lhe debaixo dos pés, que abala e sobrevive, que tem medos e segredos atlânticos, que tem flores e campos verdes que são começo, que é humidade insular em corpos que se descobrem, tempo e vagar em amor urgente, terra de confinamento de horizontes sem fim?
que amor é esse que só o Arquipélago sabe fazer?

Joel Neto Arquipélago.MP3

Poema "Uma pequenina luz", de Jorge de Sena ("Poesia II", Guimarães Editores, 2015)

A sacana a falhar... 
Não devia escrever "sacana" quando o mote é Jorge de Sena.
Não se mistura "sacana" com as palavras de Jorge de Sena.
Ele perdoará... Porque há dias em que ela nos escapa e as palavras nobres misturam-se com as chãs. 
O poeta desculpa. E, em vez de punir, dá alento. Empresta o que falha. A tal luz pequenina, bruxuleante, indefectível. 
A tal luz que é esperança. E dias há que não vem.

Jorge De Sena Uma Pequenina Luz.MP3

Excerto de "O Vale da Paixão", Dom Quixote, 1998.

Pode um romance contar um país. Pode o salazarismo e a família Dias serem o mesmo e um só, na opressão e submissão que sobre todos impõem, no rompimento da ordem pelos que não cabem nela, nos mantos de silêncio que velam os dias para que eles se sucedam iguais, sem mácula de maior. Pode. E este livro alicerça-se em muito nesta simbiose entre uma família rural algarvia e a ideologia do Estado que a governa, sem que esse Estado alguma vez seja nomeado ou descrito (para quê nomear o que lhe é intrínseco?). 
Mas, interessa-me muito mais o que a ditadura da "ordem" gera. As memórias traumáticas que dela se recuperam. O esforço que é exigido a quem não se quer desenvencilhar do passado, mas quer (tem de) viver com ele.
Interessam-me a dureza e a coragem da narradora a que Lídia Jorge não dá nome (para quê nomear quem é maior do que qualquer nome próprio?), mas que como "filha/sobrinha de Walter" mostra como a memória e a reconciliação com ela são, simultaneamente, acto de resistência e gesto combativo.

Lídia Jorge O Vale Da Paixão.MP3

Poema "Five o'clock tear", de Emanuel Félix ("A Palavra, O Açoite, Centelha", 1977)

Urge a reedição da obra de Emanuel Félix (1936-2004). Para que se fale dele. Para que esteja ali, não apenas na biblioteca, mas na livraria. E seja tão importante para uma livraria tê-lo nas estantes como ter livros lustrosos, com capas em relevo e saquinhos de organza a envolvê-los. Para que seja lido e relido. Para que eu tivesse chegado a ele mais cedo... 

Obrigada a quem dele me falou.

Leio em voz alta o poema que se colou a mim. E não sai. 
 

"Five o'clock tear

Coisa tão triste aqui esta mulher
com seus dedos pousados no deserto dos joelhos
com seus olhos voando devagar sobre a mesa
para pousar no talher

Coisa mais triste o seu vaivém macio
p'ra não amachucar uma invisível flora
que cresce na penumbra
dos velhos corredores desta casa onde mora

Que triste o seu entrar de novo nesta sala
que triste a sua chávena
e o gesto de pegá-la

E que triste e que triste a cadeira amarela
de onde se ergue um sossego um sossego infinito
que é apenas de vê-la
e por isso esquisito

E que tristes de súbito os seus pés nos sapatos
seus seios seus cabelos o seu corpo inclinado
o álbum a mesinha as manchas dos retratos

E que infinitamente triste triste
o selo do silêncio
do silêncio colado ao papel das paredes
da sala digo cela
em que comigo a vedes

Mas que infinitamente ainda mais triste triste
a chávena pousada
e o olhar confortando uma flor já esquecida
do sol
do ar
lá de fora
(da vida)
numa jarra parada"

Emanuel Félix Five O'clock Tear.MP3

English Script: https://drive.google.com/file/d/1lFNp2GwiQU28MVxrqZhMyWODr3kVAxsO/view?usp=sharing

Prémio Prata na categoria Short Forms do Prix Marulic - International Radio Festival 2021 (Croácia)

Publicada a 1 de Maio 2019 no podcast Radio Atlas com legendas em inglês: [subtitled version] http://www.radioatlas.org/the-box/

Versão em inglês para o Short Cuts da BBC Radio 4: [english version]
https://www.bbc.co.uk/programmes/m00057n0

Ouvido com headphones é melhor.

A Caixa esteve nomeada para os seguintes prémios:

Melhor Documentário no PRIX EUROPA - Continental Media Festival 2019 (Alemanha)

Prémios ‘Create’ and ‘Create GanBéarla’ no HearSay International Audio Arts Festival 2019 (Irlanda)

[PT]
A Caixa é uma peça sonora que fala dos gestos íntimos do quotidiano que atravessam a cortina do tempo, e se perpetuam na memória emocional daqueles que nos sobrevivem.  

[ENG] 
The Box tells an intimate story about loss and memory. It also evokes the sounds of a countryside family house built in 1861 and features sounds of a recovered building in Lisbon built after the 1755 earthquake. Both trigger memories of places we have known intimately: places we will never see again, sounds we will never hear again, and people who have crossed our paths that we will no longer see, but who still lurk in our emotional memory.

A Caixa [Sofia Saldanha]

My name is Rita Colaço and I love crazy ideas to share people's stories in a powerful, professional and ethical way.

I am a journalist for more than 20 years and I have been - mainly - sharing the world in sounds.

In 2017, I've created the podcast "The sound of my life" (O som da minha vida), where one can listen the sounds that comes to mind when we break down affective memories.

I am also graduated in Geography and Regional Planning, but I am more into human geography than physiography.

I'm always at ritacolaco@gmail.com

Feel free to email me!

O Som da Minha Vida - Episódio 13

Rita Colaço

Related tracks