Voltar ao garimpo sonoro das palavras. Se eu as disser em voz alta, soam diferente na cabeça? Querem dizer outra coisa? Dizer depois do clique tosco do tosco gravador. Sem edição. Ubaldo, desta vez. Para dizer com som as palavras que se dizem oralmente, sem o engravatamento pomposo e prudente da escrita. Pau é pau. Tesão é tesão. Ubaldo é Ubaldo. E certas palavras só podem ser ditas sem verniz. Como as que dizemos na cama, ao ouvido, entre gemidos mais ou menos sonoros. Ubaldo sabe. Nós só temos a aprender.

["A Casa dos Budas Ditosos", de João Ubaldo Ribeiro, Edições Nelson de Matos, 1999/2009]

João Ubaldo Ribeiro - A Casa Dos Budas Ditosos

Crónica "Descoberta de Garrincha", de Nelson Rodrigues ("À Sombra das Chuteiras Imortais: Crónicas de Futebol", Companhia das Letras, 1993)

Em dia de mais um jogo de Portugal no Mundial, de golo certeiro de Cristiano aos 3 minutos, lembro-me de Nelson Rodrigues e de Garrincha. 
Do reaccionarismo anarquista e despudorado de um, a falar de futebol e da vida, e da arte vibrante do outro, mais poesia de Deus do que técnica em quatro linhas. 
De como o futebol é - pode ser - a mágica superação das circunstâncias. todas as circunstâncias. O contraponto perfeito a inícios, a breve trecho abortados, tivessem eles começado no campo ralo do Andorinha ou nas pedras de Pau Grande. 
De como a inteligência, a beleza sublime, o rasgo apaixonado, o dom do irrepetível, e o humor mais fino com que Nelson Rodrigues fala de futebol são lembrete sério e oportuno: que o futebol é isto, só isto, e nunca aquilo (vocês sabem o quê).

Descoberta De Garrincha Nelson Rodrigues.MP3

"Folhetim", letra de Chico Buarque

O Chico, que anteontem fez anos e eu nada lhe disse... Nem um postal cliché de Alfama, um periquito azul enviado, ou uma dúzia de pastéis de nata pelo avião. Nem um beijo daqueles, morno, sussurrado na distância. 
O Chico, que esteve há pouco em Portugal... seis oportunidades, seis!, e nem a um concerto fui. 
O Chico, que nada sabe de mim, e que dele só sei as palavras e a música que com toda a gente partilha (as juras de exclusividade não são o nosso forte, assumamo-lo). 
Mas, intermitências e desencontros à parte, se acaso me quiser, ele sabe-o, sou dessas mulheres que só dizem sim.  Eu e, por ele, três quartos e meio da população mundial.

Folhetim Chico Buarque.MP3

"A manhã começa a bater no meu poema", de Herberto Helder ("Ou o Poema Contínuo", Assírio & Alvim, 2001)

A voz grave, ainda mais grave. A impressão na garganta da voz acabada de acordar, ainda sem café nem cheiro a torradas. A voz a ser lembrada, pelo chilrear dos pássaros de subúrbios melodiosos, que a manhã há-de chegar para mais um dia. E que os dias hão-de ter mais manhãs, poemas e povo, que clareiam e são a parte mais límpida da vida.

É para ti este poema e este acordar, Paula.

Herberto Helder A Manhã Começa A Bater No Meu Poema.MP3

"Uma moça chorava", letra e música de P. Auriat e V. Buggy, cantada por Linda de Suza, 1979.

houve um tempo tão pé descalço, que a vida cabia inteira em malas de cartão e sacos de serapilheira. passava-se a fronteira a salto, num salto tão veloz que não se sentiam tojos, nem pedras, nem medos, nem nada. a falta de pão para si e para os seus era urgência bem mais funda do que o medo. 
o que para trás ficava, tragava-se para dentro. o que para a frente se desconhecia, não se questionava alto. o que nos bidonvilles realmente se passava, as cartas para a família não contavam. só interessava ir. ir para poder voltar.
vividas e guardadas todas as misérias e humilhações, é natural o sobressalto feliz quando uma portuguesa de poucas letras passa pelo salto, mais a fome, mais o nada, e sobrevive, e canta, e vai à televisão, e todos a conhecem num país estrangeiro, e a valorizam no país que é seu. 
de Sousa a Suza, vencer, se alguma coisa fosse, havia de ser aquilo. 
há uma determinada música que, para uma certa emigração dos finais da década de 1970 e década de 1980, é banda sonora e embalo de lágrimas depois do trabalho, tem a profundidade que outros verão em Bach, tem força maior do que todas as canções de protesto. porque, no que à música diz respeito, o que importa mesmo é a ligação directa, perfeita, que faz à vida e ao coração de quem escuta. 
tudo o resto é debate estéril, preconceituoso e a armar aos cucos entre baixa e alta cultura. ares de superioridade de quem, sempre provido de muita sageza e malas de viagem em pele genuína, nunca viu uma mala de cartão, e suspeita que tal fenómeno não passe de mito vivo para sempre morto.

Linda De Suza Uma Moça Chorava.MP3

Excerto de "Cazuza: Só as Mães são Felizes", de Lucinha Araújo (Palavra, 2007).

mãe alguma devia ficar para contar a história do filho morto.
uma das passagens bonitas da biografia que Lucinha Araújo escreveu sobre Cazuza é quando, por amor, Lucinha decide entender e acolher as diferenças de Cazuza, a visceral assunção do prazer e a não negociável liberdade do corpo.  à versão do livro prefiro a que Lucinha conta numa entrevista:

Lucinha: Escuta uma coisa, você é veado?
Cazuza: Veado é um bicho de quatro patas. Você já me viu andar de quatro? Você está querendo saber se sou gay, é isso?
Lucinha: ...
Cazuza: Mamãe, nada é definitivo na vida, não fique assustada.

no final, a canção "Narciso", letra de Cazuza:

"A verdade nua em pêlo:
Todo humano é santo
E pode amar, sim

Eu tenho tudo o que você precisa
E mais um pouco
Nós somos iguais
Na alma e no corpo"

Lucinha Araújo Cazuza Só As Mães São Felizes.MP3

Poema de Alberto Pimenta, "A encomenda do silêncio" ("As Moscas de Pégaso", &etc, 1998)

e é o não ser e o não estar a serem e a falarem num silêncio que se ouve. e é o vazio a encher-se de rapidez, apuro estético, ritmo e performance. e, no fim, embora se fale em morte que há-de acontecer, fica a dúvida que ela se atreva sequer a chegar. ficamso a suspeitar que tudo o que é ausente se torna presente, a revelar-se indefinidamente na repetição, no ritmo e na curiosidade profícua e infinita:  

"no entanto continuando a falar um com o outro 
tu comigo e eu contigo 
cada um 
tentando dizer ao outro 
como é o mundo inteiro que tem dentro da cabeça"

Alberto Pimenta A Encomenda Do Silêncio.MP3

"Era uma vez... o Espaço", genérico português dos desenhos animados como mesmo nome, na voz de Pedro Malagueta, anos 1980.

do cliché "ao que sabe, a que soa a infância?". 
sabe a sábados de manhã compridos, jornadas de trabalho preguiçosas, preguiçadas no sofá de veludo beje, alimentadas a tulicreme e a caprisone. e soa a "Era uma vez... o Espaço", num volume tão alto que a ITT Ideal Color, tudo fazia temer, podia rebentar a qualquer momento.

esta série de animação, de 1982, foi uma produção francesa/ japonesa, dirigida por Albert Barillé. a música original é de ‎Michel Legrand. em Portugal, a série passou na RTP, a partir de 1984, e em sucessivas reposições.

Era Uma Vez O Espaço Desenhos Animados.MP3

Excerto de "Uma Abelha na Chuva" (Assírio & Alvim, 2013), de Carlos de Oliveira.

não era bem o livro de Carlos de Oliveira que mais me interessava revisitar, mas sim a Maria dos Prazeres de Laura Soveral (1933-2018). 
pode uma pessoa ser chamada "dos Prazeres" toda a vida, mas das palavras pouco mais retirar do que as letras que as fazem. ser rosto visível de vidas femininas agrilhoadas, em sufocos e silêncios, feitas mais de significantes do que de significados. 
saber lá o que são os prazeres, até onde podem ir, que convulsões podiam permitir, se de corpos estranhos e devaneio fossem capazes de dar o salto para a realidade...
sem Laura Soveral, a infeliz Maria dos Prazeres de Carlos de Oliveira existiria. mas o que dela sabemos seria bem menos. muito menos. e seria menos grito de revolta. menos contraponto exacto do que nunca quisemos para nós e nunca permitiremos.

Carlos De Oliveira Uma Abelha Na Chuva.MP3

Excerto de "Ala Feminina", de Vanessa Ribeiro Rodrigues (Desassossego, 2018).

Podia ter escolhido as palavras de Aurora ou de Glória, por exemplo. Tinha 14 vidas à disposição no livro. Mas escolhi a Margarida. Falo aqui por ela. E ela através de mim. 
Estas mulheres dentro de grades (mesmo quando fora delas, elas estão sempre presentes), garimpadas pela jornalista Vanessa Ribeiro Rodrigues, têm histórias comuns entre si. Melhor, têm histórias de medos, angústias, desafios e vitórias, momentos de fim e recomeço, iguais às de todas nós. 
Como diz uma parede no bairro do Intendente: "Nenhum de nós é o Outro".

Vanessa Ribeiro Rodrigues Ala Feminina.MP3

Letra do "Hino dos Mineiros de Aljustrel", adaptado da música tradicional "Nel Pozu Maria Luisa". 

"Os Mineiros de Aljustrel" costumam cantar com um capacete de mineiro a alumiar-lhes o caminho, um fato de macaco azul e um lenço ao pescoço que é a bandeira de Portugal. 
Já os vi e ouvi na Festa do Avante, mais do que uma vez. E até numa sala de cinema. Num São Jorge envolvente, às escuras, sem pipocas. Só a voz deles e a sombra do movimento dos corpos, dolente, compassado, que vem do Alenjejo.   
Cantam o Hino dos Mineiros de Aljustrel como quem chora e luta, tudo ao mesmo tempo. E deixam-me aos prantos de cada vez que os ouço (é mesmo pranto a palavra, porque mete lágrimas grossas em voz alta, e soluços que quase engasgam). O hino vem de Aljustrel e agarra-se ao cante alenjejano, mas tem raízes em "Nel Pozu Maria Luisa", um canto anarquista dos mineiros das Astúrias, durante a Guerra Civil de Espanha.

Hino Dos Mineiros De Aljustrel Grupo Coral Os Mineiros De Aljustrel.MP3

Canção "Vejam bem", de José Afonso.

89 anos de Zeca Afonso, hoje, dia 2 de Agosto de 2018.

A data é pretexto. O resto é música simples, urgente, com voz e palavra a dominarem tudo. 
Esta canção, "Vejam bem", tem aquela particularidade deliciosa de ter concorrido ao Festival da Canção de 1968, mas ter sido eliminada. Não lhe foi encontrada qualidade suficiente para sequer passar da primeira fase de selecção.
Mas tudo acabou bem. A canção de Zeca ganhou rumo no disco "Cantares do Andarilho" (1968), e, em vez de no Festival ecoar "E se houver/ Uma praça de gente madura/ Ninguém vem levantá-lo do chão", ganhou nesse ano Carlos Mendes, com "Verão", música de Pedro Osório e letra de José Alberto Diogo, muito mais ao gosto e às prioridades festivaleiras, até na última linha do refrão: "O verão já terminou/ Foi um sonho que findou/ Não interessa mais pensar!".

José Afonso Vejam Bem.MP3

Poema "Romance do Terceiro-Oficial de Finanças", de Manuel da Fonseca ("Obra Poética", Caminho, 2011).

"Mas tudo isso, que era tudo para nós, 
não era nada da vida!... 
Da vida é isto que a vida faz. 
Ah! sim, isto que a vida faz!... 
- isto de tu seres a esposa séria e triste 
de um terceiro-oficial de finanças da Câmara Municipal!..." 

Que é como quem explica que do entusiasmo da vida à puta da vidinha se vai num fôlego.

Manuel Da Fonseca Romance Do Terceiro Oficial De Finanças.MP3

Poema "Uma pequenina luz", de Jorge de Sena ("Poesia II", Guimarães Editores, 2015)

A sacana a falhar... 
Não devia escrever "sacana" quando o mote é Jorge de Sena.
Não se mistura "sacana" com as palavras de Jorge de Sena.
Ele perdoará... Porque há dias em que ela nos escapa e as palavras nobres misturam-se com as chãs. 
O poeta desculpa. E, em vez de punir, dá alento. Empresta o que falha. A tal luz pequenina, bruxuleante, indefectível. 
A tal luz que é esperança. E dias há que não vem.

Jorge De Sena Uma Pequenina Luz.MP3

Mário Mesquita, "O anti-herói da Revolução", Público, 1999/05/09 (in "O Estranho Dever do Cepticismo, Tinta da China, 2013) 

No dia em que passam 19 anos sobre a morte de Ernesto Augusto de Melo Antunes, leio, em voz alta, o que Mário Mesquita escreveu sobre ele, a três meses da sua morte. 
São palavras que evocam um certo jeito de ser deste "anti-herói da Revolução". 
São palavras perto do fim, que convocam um olhar amplo - e, ao mesmo tempo, necessariamente curto, que caiba nos limites físicos de uma coluna de opinião num jornal - sobre o percurso de alguém que foi homem de pensamento e acção.
São palavras justas e vividas - o escriba sabe bem de quem fala - a compor o retrato de quem importa lembrar. 
A Melo Antunes devemos muito historicamente. E, no rescaldo do que os homens fazem por nós, devemos, pelo menos, o elementar: um gesto de memória. Sempre.

Mário Mesquita Ernesto Melo Antunes, O Anti - Herói Da Revolução.MP3

Poema "O Portugal futuro", de Ruy Belo ("Homem de Palavra(s)", Assírio & Alvim, 2016)

Portugal, "aonde o puro pássaro é possível".
Ruy Belo, solar, a repensar o país, eternamente à procura dele, a ver nele futuro e esperança.

Ruy Belo O Portugal Futuro.MP3

Excerto de "O Vale da Paixão", Dom Quixote, 1998.

Pode um romance contar um país. Pode o salazarismo e a família Dias serem o mesmo e um só, na opressão e submissão que sobre todos impõem, no rompimento da ordem pelos que não cabem nela, nos mantos de silêncio que velam os dias para que eles se sucedam iguais, sem mácula de maior. Pode. E este livro alicerça-se em muito nesta simbiose entre uma família rural algarvia e a ideologia do Estado que a governa, sem que esse Estado alguma vez seja nomeado ou descrito (para quê nomear o que lhe é intrínseco?). 
Mas, interessa-me muito mais o que a ditadura da "ordem" gera. As memórias traumáticas que dela se recuperam. O esforço que é exigido a quem não se quer desenvencilhar do passado, mas quer (tem de) viver com ele.
Interessam-me a dureza e a coragem da narradora a que Lídia Jorge não dá nome (para quê nomear quem é maior do que qualquer nome próprio?), mas que como "filha/sobrinha de Walter" mostra como a memória e a reconciliação com ela são, simultaneamente, acto de resistência e gesto combativo.

Lídia Jorge O Vale Da Paixão.MP3

Poema "Five o'clock tear", de Emanuel Félix ("A Palavra, O Açoite, Centelha", 1977)

Urge a reedição da obra de Emanuel Félix (1936-2004). Para que se fale dele. Para que esteja ali, não apenas na biblioteca, mas na livraria. E seja tão importante para uma livraria tê-lo nas estantes como ter livros lustrosos, com capas em relevo e saquinhos de organza a envolvê-los. Para que seja lido e relido. Para que eu tivesse chegado a ele mais cedo... 

Obrigada a quem dele me falou.

Leio em voz alta o poema que se colou a mim. E não sai. 
 

"Five o'clock tear

Coisa tão triste aqui esta mulher
com seus dedos pousados no deserto dos joelhos
com seus olhos voando devagar sobre a mesa
para pousar no talher

Coisa mais triste o seu vaivém macio
p'ra não amachucar uma invisível flora
que cresce na penumbra
dos velhos corredores desta casa onde mora

Que triste o seu entrar de novo nesta sala
que triste a sua chávena
e o gesto de pegá-la

E que triste e que triste a cadeira amarela
de onde se ergue um sossego um sossego infinito
que é apenas de vê-la
e por isso esquisito

E que tristes de súbito os seus pés nos sapatos
seus seios seus cabelos o seu corpo inclinado
o álbum a mesinha as manchas dos retratos

E que infinitamente triste triste
o selo do silêncio
do silêncio colado ao papel das paredes
da sala digo cela
em que comigo a vedes

Mas que infinitamente ainda mais triste triste
a chávena pousada
e o olhar confortando uma flor já esquecida
do sol
do ar
lá de fora
(da vida)
numa jarra parada"

Emanuel Félix Five O'clock Tear.MP3

Poema "Esse não é meu filho", de Ondjaki ("Há Gente em Casa", Caminho, 2018)

Pego no mais recente livro de poesia de Ondjaki, e experimento no corpo a ferocidade das palavras do poema "Esse não é meu filho". Leio-as como se fosse a voz do poema, o carrasco que fere sem hesitar, sem empatia que o faça olhar para lá de si, sem qualquer resquício de bondade.  
Leio-as e, pela minha voz de comando, chego a quem está agrilhoado, penso na ausência de liberdade e no medo. Aquele medo espesso, que é oferecido sem misericórdia por quem manda, para melhor se colar à pele de quem não tem voz. 
E passo de carrasco a vítima. À procura de mim, no meio de tanta violência. E sinto uma espécie de feridas fundas, muito fundas, que só as palavras conseguem abrir e sabem fechar.

" (...)
peguem no abuso, no desrespeito
na humilhação
e deem-lhe com força
para que não tenha voz
nem noção
nem costume de dizer o que pensa
sobretudo contra quem manda

dispam-no
pisem sem pedir licença
de modo a esmagar
as mais pequenas convicções
nem discursos, nem panfletos
nem rimas, nem frases absurdas"

Ondjaki Esse Não É Meu Filho.MP3

A Luanda das transparências e dos transparentes. Território metamorfoseado pela corrupção e pelas desigualdades mais fundas. 

"a verdade é ainda mais triste, Baba: não somos transparentes por não comer... nós somos transparentes porque somos pobres."

Ondjaki, "Os Transparentes", Caminho, 2012.

Ondjaki Transparentes.MP3

Era de noite, tão de noite, muito de madrugada, quando ouvi esta versão pela primeira vez. A Antena 1 baixinho, baixinho, e um arrepio na espinha, quase tão cristalino como a voz de Lena d'Água: "A noite passada acordei com o teu beijo..."

[Letra e música de Sérgio Godinho, voz de  Lena d'Água, no disco "Sempre - Ao vivo no Hot Clube", 2007.]

Lena d'Água A Noite Passada.MP3

Cláudia Henriques nasceu em Lisboa, em 1980. Viveu nos subúrbios da cidade desde o primeiro dia e reconhece as margens. Gosta delas. Fez-se nelas. Entretanto, mudou-se para a margem de lá e é feliz. Acorda, vê uma nesga da serra, ouve os galos e as galinhas do vizinho, e sorri. É doutoranda do Programa de Doutoramento FCT em Estudos de Comunicação, tendo-lhe sido atribuída bolsa de doutoramento. O projecto de tese versa sobre o Rádio Clube Português e a construção histórica do jornalismo radiofónico em Portugal (1960-1974). Tem mestrado em Jornalismo (FCSH) e estagiou como jornalista na Rádio Renascença. A sua licenciatura de base é História (FCSH), a que se seguiu uma pós-graduação em Ciências Documentais/Arquivos (FL/UL). Digamos que não fazendo um quadrilátero perfeito, as circunstâncias do seu percurso conduziram-na, quase sem dar por isso, a quatro vértices distintos, mas síncronos: Jornalismo, Rádio, História e Arquivos. Olha para eles a dois tempos: como campos científicos, e como paixão teimosamente assumida. O jornalista Assis Pacheco, num célebre poema, falava em "saudade burra". Ela encontra em si uma paixão burra por estas áreas. E todas elas, mais a vida, só interessam porque estão cheias de palavras. Um dia, à maneira do Assis, com um pé firme na Primavera, crê esta criatura que também irá dizer adeus a isto tudo, sobretudo às palavras, com uma paixão burra, deliciosamente burra.
Até lá, A MINHA VOZ TEM PALAVRAS. E nela cabem poemas, nacos de prosa, um anúncio, o diálogo de um filme, letras cantadas, bulas de medicamentos inspiradas. Os sons são sujos e roufenhos, mas a vida também não é limpinha. Palavras, grão e respiração. Para não morrer. Para não me esbardalhar na calçada. Para me esbardalhar menos. Mais devagarinho e com menos hirudoid.

«Um homem tem que viver.
E tu vê lá não te fiques
– um homem tem que viver
com um pé na Primavera.

Tem que viver
cheio de luz. Saber
um dia com uma saudade burra
dizer adeus a tudo isto.
Um homem (um barco) até ao fim da noite
cantará coisas, irá nadando
por dentro da sua alegria.

Cheio de luz – como um sol.
Beberá na boca da amada.
Fará um filho.
Versos.
Será assaltado pelo mundo.
Caminhará no meio dos desastres,
no meio dos mistérios e imprecisões.
Engolirá fogo.

Palavra, um homem tem que ser
prodigioso.
Porque é arriscado ser-se um homem.
É tão difícil, é
(com a precariedade de todos os nomes)
o começo apenas.» 

Fernando Assis Pacheco (in "A Musa Irregular", Asa, 1996)

Cláudia Henriques - A Minha Voz Tem Palavras

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